João Paulo R. de Souza e Silva, pastor da 1ª IPI de Assis/SP
Com o prolongamento do isolamento social passamos a viver um momento no qual o excesso de discursos começou a se tornar cansativo e enfadonho. Todo dia tem uma live diferente para assistir: conversas de celebridades, show na casa de famosos e uma infinidade de cultos e pregações. Enfim, por conta dessa exposição excessiva a inúmeras vozes, as palavras vão se esvaziando de significado. O discurso perde sua força, e aquilo que teria o poder de inflamar corações e provocar mudanças não passa de sons repetitivos (tipo a professora do Charlie Brow do desenho Snoop). Resumindo estamos ficando cansados de tanta conversa. Esperamos e ansiamos por ações e atitudes que tornem os discursos reais, encarnando ideias e pensamentos. Precisamos de menos conversa e mais coerência!
O tema não é novo, pois o apóstolo Tiago – irmão do Senhor (cf. Mt 13.55) – aborda o assunto em sua carta (Tiago 2.14-26). De maneira simples e direta – na verdade, tão direta que provavelmente feriria nossa sensibilidade moderna! – o apóstolo chama os crentes para que vivam de maneira coerente com seu chamado, praticando aquilo que confessam, do contrário a fé torna-se inútil, “morta como um cadáver”, como a Bíblia “A Mensagem” traduz o versículo 26. Meu objetivo não é fazer uma exegese do texto, apenas gostaria de destacar que: se Tiago faz uma recomendação aparentemente tão óbvia; se em seu zelo pastoral ele precisa chamar a atenção das igrejas para esse assunto; muito provavelmente, isso se deve ao fato de que de alguma forma as atitudes não correspondiam às ações. Ou seja, a fé praticada não correspondia à fé professada! Se pensarmos ainda que seus ouvintes eram os chamados “judeus da Dispersão” ou “da Diáspora” (cf. Tg 1.1), isto é, aqueles judeus que haviam se convertido ao cristianismo e precisaram abandonar a Palestina por conta da perseguição religiosa, sendo, portanto, um grupo de crentes que se encontrava vivendo em meio às culturas pagãs, e, exatamente por isso, era alvo da observação atenta e desconfiada dos vizinhos gentios (Cf. 1 Pe 3), então, perceberemos que o que está em jogo aqui é a validade que seria dada à mensagem do Evangelho do Reino proclamada por aquelas igrejas.
Penso que funcionava mais ou menos assim: os cristãos diziam que adoravam um Deus que abriu mão de todo o seu poder e majestade. Um Deus que se esvaziou de sua divindade e tornou-se um ser humano, e, como homem, continuou abrindo mão do poder, não sendo encontrado nos palácios, mas na periferia do Império entre os pobres e excluídos da sociedade. Esse homem possuía uma marca: sua característica principal era um amor intenso que se doava pelos outros. Um amor tão radical que o levou a entregar-se como sacrifício. Um justo em favor dos injustos. Ora, esse era um pensamento completamente estranho para a mentalidade imperialista que idolatrava o poder. Portanto, se um cristão – que dizia crer no Deus que abriu mão do poder por amor ao outro, agisse de acordo com sua crença, abrindo ele próprio mão do poder, por exemplo, em seus relacionamentos pessoais: tratando sua esposa com dignidade e não como propriedade, tal como as sociedades patriarcais antigas funcionavam; tratando os filhos com atenção e carinho, e não simplesmente como mão de obra, tal como as culturas pré-industriais se organizavam; e até mesmo os escravos com respeito e afeto, talvez até o ponto de libertá-los! Com certeza, isso causaria um grande impacto nos seus vizinhos pagãos, gerando uma de duas reações: ou o vizinho sentiria repulsa pelo cristão e zombaria de sua crença, ou sentiria atração e admiraria aquele estilo de vida.
Como disse Chuck Colson, fundador do Prison Fellowship Ministries: “As pessoas não eram atraídas para o cristianismo por causa de eventos, cruzadas de evangelização ou meios de comunicação em massa – essas coisas não existiam naquela época. A igreja cresceu porque os cristãos viviam o Evangelho e tinham uma comunidade – uma igreja local – na qual as pessoas realmente amavam umas às outras. Durante as grandes pestilências que assolaram Roma, no século II, todos os médicos fugiram, mas os cristãos ficaram e cuidaram dos doentes. Eles incorporaram o que os cristãos são chamados a fazer. Embora muitos cristãos tenham morrido por ter cuidado dos doentes, os pagãos foram atraídos para Cristo porque viram o amor dos cristãos e do próprio cristianismo como uma forma melhor de viver”.1
Em outras palavras, uma igreja que proclamava que o Reino de Cristo é um Reino de justiça e shalom, obrigatoriamente abolia as barreiras de raça, gênero e cultura (cf. Gl 3.28; At 13.1; Rm 16); uma igreja que proclamava que o Reino de Cristo é o Reino da generosidade e abundância, obrigatoriamente repartia entre si os recursos, de tal forma que, “nenhum necessitado havia entre eles” (cf. At 4.34-35; 2Co 8 e 9); uma igreja que proclamava que o Reino de Cristo era um Reino de liberdade, obrigatoriamente lutava com as armas espirituais e presenciava pessoas sendo libertas (cf. Ef 6.10-17; At 19.11-20; Cl 2.6-23; 1 Pe 5.8-9). Palavras e ações geravam forte testemunho que impelia os de fora da comunidade a se posicionarem: atração ou repulsa, conversão ou perseguição. Nunca, indiferença!
Sendo assim, podemos concluir que, o objetivo de Jesus foi construir uma comunidade que encarnasse as palavras de vida que ele proclamava e foi apenas isso que ele fez! Ele não se preocupou em construir templos, organizar corais ou estabelecer rituais elaborados. E por cerca de 400 anos a igreja manteve-se fiel a esse programa simples e esse foi o período de maior coerência, e consequentemente de maior impacto. Mas, a partir do momento que a igreja abandonou a simplicidade do projeto de Jesus e começou a perder o foco, por conta da união com o Império provocada por Constantino, a partir do momento que a igreja foi se tornando cada vez mais ocupada e preocupada com seus templos, rituais, vestes sacerdotais, discussões teológicas, corais e uma infinidade de parafernália religiosa, a coerência entre as palavras e ações se enfraqueceu! Por outro lado, sempre que a igreja retornou à simplicidade do projeto original, seu impacto social foi e é enorme. Um dos principais exemplos modernos é a China comunista. Segundo o missiólogo australiano Alan Hirsch, em seu livro “Caminhos Esquecidos”, a China antes do regime comunista possuía cerca de 2 milhões de cristãos. Com a tomada do poder por Mao Tsetung, os missionários estrangeiros foram deportados, os pastores locais foram mortos ou presos, templos e propriedades foram confiscados e Bíblias foram queimadas. Quando por volta do início dos anos 80, a chamada “cortina de bambu” foi levantada, e os missionários puderam voltar ao país, pensando que teriam de começar o trabalho do zero, pois tinham por certo que a igreja estava morta, para a glória de Deus, foram surpreendidos com o fato de que os 2 milhões de cristãos tornaram-se cerca de 60 milhões (talvez 80 milhões)! Eles viveram um crescimento exponencial sem poder contar com os templos, cultos públicos, líderes treinados, grupos de louvor e muitas das coisas que achamos serem essenciais e insubstituíveis. Como isso aconteceu? Nas palavras de Hirsch: “Fizemos tantas outras coisas, mas essa é a mais básica de todas. Discipulado. Tornar-se como Jesus, nosso Senhor e Fundador, está no epicentro da tarefa da igreja. Isso significa que a cristologia deve definir tudo o que fazemos e dizemos. Também significa que, para recuperar o ethos do cristianismo autêntico, precisamos reorientar nossa atenção de volta à raiz de tudo, para recalibrar a nós mesmos e as nossas organizações em torno da pessoa e do trabalho de Jesus, o Senhor. Significará levar os evangelhos a sério como os textos primários que nos definem.”
Por essa razão, penso que o isolamento e a impossibilidade de estarmos nos templos, talvez seja uma das maiores bênçãos que poderíamos receber. Mais uma vez temos a chance de voltarmos à simplicidade do evangelho. Ao discipulado que não é acorrentado pelo isolamento social, mas que se beneficia da tecnologia para gerar proximidade ainda que a distância. Essa é a oportunidade para que esta multidão de “desigrejados”, frustrados e machucados com a religiosidade plástica, meramente estética e incoerente, seja atraída pelo Espírito da Vida, que direciona e energiza o povo de Deus, à medida que esse povo encarna em atitudes simples de amor a esperança futura do Novo Céu e da Nova Terra, fazendo com que o futuro esperado e aguardado seja experimentado agora, no seio da comunidade que se comprometeu a viver a vida do Cristo crucificado e ressurreto, tornando-se ela própria disseminadora de “pequenos Cristos”. Como disse Philip Yancey, em Eclipse da Graça: “cristãos comuns deve seguir um estilo de vida que destoe da cultura ao seu redor, caso contrário nossa mensagem nunca será ouvida. Nisso reside o mais solene desafio enfrentado pelos cristãos que desejam comunicar sua fé: se não tivermos um estilo de vida que, em vez de afastar, atrai outros para a fé, nenhuma de nossas palavras terá importância”. Que Deus nos faça íntegros, para que nossas palavras sejam coerentes com nossas ações.
1- KINNAMAN, David; Descrentes: o que a nova geração realmente pensa sobre o cristianismo e por que isso é importante, p 97;